Uma Breve Análise sobre o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965, de 23.04.2014)

Perfis falsos, responsabilidade civil dos provedores e coibição dos crimes virtuais a partir do Marco Civil da Internet

Por Pedro Navarro Cesar, Danilo Botelho dos Santos e Bárbara Spohr Gonçalves

O julgamento recente, pelo Supremo Tribunal Federal, sobre a continuidade do “inquérito das fake news” fez renascer antigo e relevante debate sobre a utilização da internet como instrumento de violação de direitos e garantias, abrigado e protegido pelo manto da “liberdade de expressão”, e a sensação de impunidade causada pelo anonimato digital.

No ano de 2014, com a entrada em vigor do chamado Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014), o acesso à internet foi alçado à posição de instrumento de promoção e garantia da cidadania e desenvolvimento humano, atuando ao lado de direitos como: saúde, trabalho e moradia, previstos no artigo 6º da Constituição Federal de 1988.

Se por um lado, o acesso à internet constitui um direito do cidadão; por outro, é acompanhado de deveres e limitações (como todo direito), os quais devem ser respeitados e são desejáveis na promoção de um ambiente virtual saudável e democrático.

Fake News e outras práticas

O termo fake news é bem conhecido atualmente e dispensa apresentações, além dos transtornos que são causados pelas fake news (o que, infelizmente, vem se tornando cada vez mais comum), existem outros meios lesantes como a existência de um perfil falso em rede social, seja em nome de pessoa natural ou jurídica verdadeira, ou inventado. Em 2020, estima-se que dos 955 milhões de perfis ativos na rede social Facebook, 8,7% sejam falsos – ou seja, em torno de 8,3 milhões de perfis.

Alguns desses perfis não possuem finalidades específicas. Contudo, não é incomum que um perfil falso seja utilizado para a prática de ameaças, difamação, calúnia, injúria, e a promoção de outros atos ilícitos.

Como exemplo, recentemente um homem foi condenado criminalmente no Distrito Federal por perseguir, difamar e ameaçar a ex-namorada utilizando um perfil falso. Caso semelhante ocorreu em Tocantins, onde um homem foi preso no dia 27 de maio de 2020 pela prática dos mesmos crimes. Também é comum encontrar perfis falsos que utilizam fotos ou nome de outrem – prática que pode ser considerada uma violação ao direito de nome e imagem.

Contudo, até o advento do Marco Civil da Internet, existiam divergências nos Tribunais brasileiros sobre a existência e a natureza da responsabilidade civil dos provedores de conexão e de aplicação de internet pelo uso e conteúdo de terceiros.

É neste contexto que o legislador optou por regulamentar o tema no Marco Civil da Internet, por meio da Seção intitulada: “Da Responsabilidade por Danos Decorrentes de Conteúdo Gerado por Terceiros”. Conforme previsão do artigo 18, o provedor de conexão de internet, entendido como aquele que fornece serviços que possibilitam o acesso de seus consumidores à internet (por exemplo: NET Claro, Vivo), não será responsabilizado por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros, tampouco é obrigado a realizar fiscalização prévia do conteúdo produzido por terceiros.

Por sua vez, o artigo 19 do Marco Civil da Internet previu a responsabilidade subjetiva do provedor de aplicações de internet, assim entendidos como os provedores de hospedagem e conteúdo (como as redes sociais). Referido dispositivo legal estabelece que, se após ordem judicial específica, o provedor não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço, e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, será responsabilizado civilmente pelo dano causado, sem prejuízo da responsabilização do autor do fato, civil e criminalmente, pelos atos ilícitos cometidos utilizando-se do perfil falso.

Conforme bem explicitado pela Exma. Ministra Nancy Andrighi, no voto do Recurso Especial nº 1.531.653/RS, julgado em 13/06/2017 pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça:

No âmbito da jurisprudência dos tribunais brasileiros, conforme exposto pela doutrina, surgiram três entendimentos sobre a responsabilidade civil dos provedores de aplicações de Internet por conteúdos gerados por terceiros: (i) a irresponsabilidade pelas condutas de seus usuários; (ii) a responsabilidade civil objetiva; e (iii) a responsabilidade subjetiva, que pode ser subdividido a partir do momento em que o provedor de aplicação seria responsável pelo conteúdo gerado por terceiro.” (grifos no original)

A positivação da responsabilidade subjetiva dos provedores de conteúdo é uma importante previsão do Marco Civil da Internet, a qual converge com a posição dominante do Superior Tribunal de Justiça – STJ, e exclui a responsabilidade dos provedores de conexão de internet em relação à análise prévia dos conteúdos que são publicados nos canais de seus usuários.

Os doutrinadores Carlos Affonso Souza e Ronaldo Lemos ressaltam que o Superior Tribunal de Justiça já tendia a adotar a teoria da responsabilidade civil subjetiva quando se trata dos provedores de conteúdo. Nesse contexto, e após a promulgação do Marco Civil da Internet, o entendimento jurisprudencial se consolida. Indo além, destacam que a Corte Superior entende pela existência de solidariedade entre o provedor de conexão de internet e o autor do dano:

Carlos Affonso Souza e Ronaldo Lemos. Marco civil da internet: construção e aplicação. Juiz de Fora: Editar Ed., 2016, p. 81.

Em seus mais recentes posicionamentos sobre o tema, o STJ tem defendido a tese da responsabilidade subjetiva dos provedores justamente pela não remoção do conteúdo reputadamente ilícito quando ciente de sua existência por uma notificação da vítima. Aqui são considerados em conjunto tanto os casos em que o provedor se omite em responder à notificação da vítima ou de forma ativa responde a notificação afirmando que não vê motivos para retirar o conteúdo do ar. Nesses casos a responsabilidade, além de subjetiva, seria também solidária com o autor do dano.

Assim, restou pacificada a questão da responsabilidade civil dos provedores – de conexão e de aplicações/conteúdos – de internet, instituindo-se regimes jurídicos diferentes de acordo com a caracterização do serviço.

Responsabilidades

Muitas vezes os que se consideram vítimas de atos ilícitos praticados por perfis falsos buscam não apenas a retirada do conteúdo da rede de internet, mas também a identificação do autor do conteúdo, com o intuito de perseguir a responsabilização civil e, eventualmente, criminal pelos danos sofridos.

Nesse sentido, cabe ao provedor de conexão a guarda dos “registros de conexão”, ou seja, “o conjunto de informações referentes à data e hora de início e término de uma conexão à internet, sua duração, e o endereço IP utilizado pelo terminal para o envio e recebimento de pacotes de dados” (conforme conceito do artigo 5º, inciso VI, do Marco Civil da Internet), que deverão ser mantidos sob sigilo e somente poderão ser acessados mediante ordem judicial específica (artigo 13). É vedado, inclusive, ao provedor de conexão a guarda dos registros de acesso a aplicações de internet, conforme artigo 14.

Por sua vez, cabem aos provedores de aplicações de internet a guarda dos “registros de acesso a aplicações de internet”, conceituadas como “o conjunto de informações referentes à data e hora de uso de uma determinada aplicação de internet a partir de um determinado endereço IP” (conforme conceito do artigo 5º, inciso VIII, do Marco Civil da Internet).

A vítima que deseja obter acesso a referidos registros deve fazê-lo de forma fundamentada, indicando a sua utilidade “com o propósito de formar conjunto probatório em processo judicial cível ou penal” (artigo 22).

Fornecimento de dados

Uma recente e importante decisão do Superior Tribunal de Justiça sobre fornecimento de dados foi tomada pela Terceira Turma, em 05/11/2019, quando do julgamento do Recurso Especial nº REsp 1784156/SP, de relatoria do Exmo. Ministro Marco Aurélio Belizze. A Terceira Turma decidiu, por unanimidade, que a obrigação de guarda e fornecimento da porta lógica de origem associada ao IP é “simples desdobramento lógico do pedido de identificação do usuário por IP”.

A decisão constitui um avanço na busca pela reparação de ilícitos virtuais, uma vez que, conforme bem explicam Guilherme Magalhães Martins, João Victor Rozatti Longhi e José Luiz de Moura Faleiros Júnior, durante a migração para a versão 6 do protocolo IP (dado que a versão 4 atingiu o seu limite de endereços atribuíveis em 2019), “os provedores passaram a se valer do compartilhamento de IPs para que a ampla difusão da Internet continue sendo viável, mas há um perigoso obstáculo decorrente desta prática: a atribuição multitudinária de um protocolo (fragmentado em diversas portas lógicas) torna dificílima a correta e precisa identificação do usuário que, porventura, pratique determinado ilícito na Internet, pois esse mesmo IP estará servindo, simultaneamente, a uma plêiade de usuários dos serviços do provedor de conexão”.

Em face da prática de compartilhamento de IPs, o mero fornecimento do endereço de IP seria insuficiente para identificar o autor do ato ilícito. De fato, o fornecimento da porta lógica de origem permitirá a identificação do terminal conectado ao IP – ainda que por meio de IP compartilhado –, contribuindo para a identificação correta e precisa do usuário.

Assim, é possível perceber o avanço e empenho tanto do legislador, quanto do Judiciário, em coibir cada vez mais os crimes cibernéticos, acabando com a sensação de impunidade que o (inexistente) anonimato da internet parece conceder aos perpetradores de atos ilícitos.

O ciclo repetitivo das notícias sobre referidas práticas criminosas (de fake news a ataques por perfis falsos), que, de tempos em tempos, retomam a atenção dos juristas e da mídia demonstram que, apesar de a internet ser inquestionavelmente um instrumento de promoção da cidadania, a mesma também pode ser utilizada para perpetrar ofensas, requerendo a atuação ativa dos órgãos competentes na coibição de práticas ilícitas.

Para os sócios Pedro Navarro, Danilo Botelho e Bárbara Spohr: “É importante questionar a concepção de que a internet seria “terra de ninguém”, ao contrário, ela pertence a todos, e, portanto, encontra-se sujeita ao convívio social e à estipulação de direitos e deveres, assim como qualquer outra prática humana. Incorre em erro quem lhe confere status fora do ordenamento jurídico e defende radicalmente a ausência de limites. É óbvio que a liberdade de expressão é um direito fundamental que precisa ser profundamente protegido num ambiente efetivamente democrático, no entanto, este direito não outorga uma “carta branca” para o agir, especialmente quando há relevante invasão a direitos fundamentais de outrem. Nesses casos, é preciso achar um ponto de equilíbrio que minimize a interferência danosa e promova a máxima integração entre direitos. Faz parte da função jurisdicional, especialmente a de índole constitucional, regular a ponderação entre direitos fundamentais.”

Pedro Navarro Cesar Advogado, com formação Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, Mestre em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC e Ex-Assessor-Chefe da Secretaria de Estado de Planejamento e Integração Governamental.

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